Encontrei- num amontoado de tralha, não sei quantos anos depois.
Os cadernos não são feitos para ficarem vazios. Devem ser entranhados com palavras, desenhos, riscos e rabiscos. Foi por isso que o resgatei da poeira onde se havia infiltrado há tempo indefinido.
Ao ver o meu nome de criança na capa assaltou-me - como é hábito - a curiosidade, e, ao abri-lo, um terço de página destapava subtilmente o título deste pequeno texto: "Amar a Deus", com letra de menino.
Deus ou deus, se preferirem, não haveria de crer um caderno vazio. Nem que de heresias se componha ele.
Por entre insónias e depois de uma batalha incessante no acesso às legendas - confesso: sou um admirador de cinema preguiçoso, que não prescinde das letrinhas na língua materna -, lá consegui visualizar Barton Fink, a obra seminal dos irmãos Coen.
Sem esmiuçar demasiado o enredo, Barton Fink poderia ser a história dos próprios irmãos Coen.
Começaram "a sério" com Blood Simple, entrando de imediato para a categoria de realizadores/argumentistas de culto à margem do sistema, mantendo esse estatuto até aos dias de hoje. Foi por isso que o Oscar chegou apenas em 2008, curiosamente com a adaptação de uma obra do escritor Cormac McCarthy, e que formal e estilisticamente segue a peugada de Blood Simple. Falo evidentemente de No Country for Old Men.
Entre, a rebeldia, o sonho, a timidez e a magia, o filme transporta-nos para o limbo hollywoodesco: céu/inferno (recordo-me de Lynch em Mulholland Drive, sem o humor negro dos Coen).
Barton Fink (John Turturro numa interpretação fabulosa) é um escritor de teatro com reconhecido talento em Nova Iorque. Timidamente decide aceitar uma carreira como argumentista de cinema para uma grande companhia de Hollywood. Inseguro - afinal de contas a instabilidade emocional das personagens parece ser uma das características transversais a toda a filmografia dos Coen - o escritor viaja para a costa Oeste com a certeza de nada. É destas características humanas que nascem o humor negro e corrosivo que em Barton Fink atinge proporções grandiosas. O burlesco hotel onde o escritor permanece durante a sua estada em contraste com as mansões dos grandes tecnocratas do cinema, a divisão entre o escritor da pobre condição humana e o argumentista vendido por um punhado de dólares ao cinema de massas, mas acima de tudo o bloqueio criativo nada conivente com os estúdios sedentos de ideias fúteis, conduzem-nos a um universo onde realidade e fantasia se cruzam e onde as outras personagens completam o puzzle de uma forma magistral (portentoso o papel de John Goodman).
A realidade é o que vemos explícitamente, ou é a fantasiosa realidade da mente do escritor imbuída de uma criatividade que é a dos próprios Coen?
O decor é profícuo em signos, metáforas de paradoxos. Serão as chamas o apocalipse de Hollywood ou ainda se vislumbrará esperança para além da linha do horizonte que divide o céu do mar?
Barton Fink venceu Cannes mas nunca poderia vencer Hollywood (ainda bem, digo eu).